30 de março de 2010

A menina de um olho só

Ela nascera apenas com um olho só, filha de uma árvore com uma pedra. Herdou da mãe a paciência e do pai a dureza.Aprendeu a falar com um ano de idade, aos dois anos de idade falava oito línguas e descobriu que era a reencarnação de Guimarães Rosa, aos três anos de idade foi agraciada com uma cadeira na academia brasileira de letras tornando-se uma imortal, substituiu Paulo Coelho que renegou a literatura e abriu uma loja de conveniência na Rússia. Além dos seus dotes lingüísticos e literários era uma profunda conhecedora da vida provando que para melhor enxergar bastava um olho só e com isso atraindo multidões que vinham lhe pedir conselhos de todas as partes do globo terrestre e ás vezes alguns visitantes interplanetários também marcavam presença. Aos sete anos de idade teve uma crise existencial e decidiu ir meditar no morro do alemão ao som de balas e pagodes, um ano depois alcançou a iluminação, arrancou o único olho com o qual nascera e o jogou na Baía de Guanabara, seu gesto de revolta nunca foi esquecido e ergueram no corcovado um monumento a menina de um olho só, onde milhares de pessoas vão todos os anos pedir uma graça ou uma iluminação.
Fim

29 de março de 2010

15/04/1999 – 10:20 – Dia nublado.

Carta de Jacinto Siqueira ao amigo Sebastião Monte. Professor universitário - antropólogo.
Primeira carta.
Tenho que confessar que receber uma carta sua é sempre motivo para o aparecimento súbito de sentimentos, de certa forma, antagônicos: alegria e chateação. Alegria porque é sempre bom ter um contato com um velho amigo que sucessivamente me surpreende com suas histórias malucas de filmes policiais b – aquele pseudo noir tupiniquim que mais parece ter saído de um programa de humor ou de uma novela das oito. Chateação porque as cartas sempre me parecem erguer seus alicerces mais sobre um pedido de quebra-galho do que do que na tentativa de matar as saudades de um camarada antigo. Tudo bem, amigo é pra essas coisas. Ainda mais quando lembro que nossa relação foi sempre uma mistura de amizade e aproveitamento, eu te dando ajuda e você me dando esse seu “sarcasmo negro” que me diverte tanto. Simbiose, pra ficar numa metáfora clichê da biologia.
Antes de fazer meu favor, peço só que tenha paciência para compartilhar comigo da minha crise de nostalgia que tenho sofrido nesses últimos dias e lembrar daquele tempo em que estávamos ambos na faculdade de direito. Você porque queria botar os caras maus na cadeia e eu porque tinha que fazer isso pra agradar o liberalismo do meu pai. Aquele era um bom tempo, menos por causa do curso, que era de fato um tremendo pé-no-saco, do que pela quase total falta de responsabilidades reais que tínhamos. Ficar putos e alegres, essa era nossa tarefa naquela época, o que deixa tudo mais triste quando percebo que perdemos esse dever intrinsecamente antitético e ficamos só com a primeira parte da equação. Talvez tenha sido essa perda que tenha nos tirado do caminho semelhante que trilhávamos e levado você a virar inspetor logo de vez e eu a procurar outro curso. Mas não é nisso que venho pensando esses dias, nos motivos, mas somente nos acontecimentos, então vou deixando essa reflexão de lado antes que vire um chororô vergonhoso para nós dois. Deixemos isso pra lá e vamos ao seu favor.
O pacote. Dei uma pesquisada sobre religiões africanas, e, embora não seja minha principal área, acredito que consegui descobrir do que se tratava. Segundo um artigo escrito na década de 60 por um professor francês chamado Jean-Pierre Duboir, tal pacote se trata de um fetiche que visa trazer desgraça à vida da vítima do bruxo que o confeccionou. Com certeza você já ouviu falar dos famosos bonecos vudu; é algo semelhante, embora a origem seja diferente, bem como os princípios simbólicos envolvidos. Segundo Duboir, se trata de uma espécie de vudu do norte da Angola, praticada por um povo chamado “Zeua”. Tal fetiche, de nome “umuluco”, possui o poder de atrair para o mundo dos vivos o espírito de alguém que, pelo fato de ter morrido violentamente, carrega em si uma fúria interminável. Este espírito procura de todas as formas descarregar sua fúria sobre alguém, que acaba sendo a vítima do bruxo que fez o umuluco. O globo ocular é realmente de uma criança (você não imagina o quanto vê-lo me causou arrepios), e segundo a simbologia do fetiche, ele funciona como o “item material” que propicia o espírito ver seu “alvo”; para os Zeua o olho de uma criança possui certas propriedades mágicas, dentre as quais, fazer uma “ponte” visual entre o mundo dos vivos e dos mortos. O que parecia cinzas é um preparado de terra com várias ervas queimadas, e o que parecia sangue, era sangue de fato. Provavelmente de algum animal quadrúpede ou de alguma ave, não de ser humano. As sementes são de baobá, arvore sagrada para vários povos africanos, talvez você já tenha ouvido falar. No fetiche funcionam como uma espécie de alimento espiritual para o morto; elas são responsáveis por garantir-lhe energia o suficiente para manter-se no mundo dos vivos até encontrar sua vítima.
Estou mandando o artigo do Duboir para você mesmo ler. Talvez seja mais elucidativo do que somente o que eu resumi aqui nesta carta.
Devo reconhecer que toda essa história me parece bastante esquisita; mas se ainda assim você quer saber minha opinião sobre a veracidade dos fatos narrados pelo seu falecido contratante, acredito que você já deva imaginar que considero tudo a mais pura balela. Não sei com qual objetivo o sujeito o procurou, muito menos porque se deu ao trabalho de fazer um trabalho de pesquisa tão apurado para reproduzir o fetiche (sem contar com o “trabalho” possivelmente homicida, levando em consideração que o globo ocular seja verdadeiro) e entregá-lo a você, mas todos nós que temos um mínimo de conhecimento que seja sabemos que tudo isso é invenção de um povo que ainda se encontra num estágio de pensamento muito antigo. Se dentre muitos de nós, filhos do pensamento racional e cético, ainda há aqueles que acreditam na história da cobrinha falante, imagine só aqueles que se encontram bem afastados da nossa cultura, vivendo ainda debaixo do céu como viviam seus mais remotos ancestrais? Não dizendo que isso seja triste, pois é o modo original deles viverem, e não se pode querer tirar isso deles; mas triste são aqueles que copiam esse tipo de coisa e vendem como se fosse verdade dentro de uma realidade totalmente distinta. Ainda mais para enganar as pessoas, como – acredito eu - tentaram fazer com você, meu caro. Espero que você descubra o porquê (e conhecendo-o como conheço, sei que vai).
Mas bem, vou parando por aqui com minhas divagações. Entretanto, antes de me despedir, deixe-me falar de algo realmente interessante e que talvez o ajude com sua investigação.
Ontem, logo depois que eu terminava a minha pesquisa para responder sua carta, apareceu por aqui uma jovem mulher procurando pela ajuda de um especialista sobre um determinado assunto ligado a fetiches. Achei engraçada a coincidência, mas logo ela se revelou muito maior do que eu imaginava: a moça pedia informações sobre o mesmo pacote que você me enviou! Tentando disfarçar a surpresa, disse que essa não era exatamente minha área, mas ela insistiu que qualquer descoberta sobre o assunto seria “amplamente recompensada”; só então reparei que ela tinha toda uma pinta de ricaça, com bolsa, sapatos, jóias e roupas nitidamente caros. Disse a ela que faria o possível para descobrir algo, e ela me deixou seu cartão pedindo que eu entrasse em contato logo que tivesse alguma informação, por menor que fosse.
Não falei nada para ela porque não sabia se isso poderia prejudicar sua investigação (veja que deixei de ganhar um possível bom dinheiro por sua culpa!). De todo jeito, mando-o também o nome e o contato da moça. Talvez isso seja útil.
Bom, despeço-me finalmente. Espero ter ajudado em alguma coisa. E não se esqueça de me avisar sobre qualquer novidade sobre o caso.
Um grande abraço, meu amigo.
J. Siqueira.

18 de julho de 2009

07/04/1999 07:45 - dia chuvoso.

Carta de Sebastião Monte ao amigo Jacinto Siqueira. Policial dispensado – detetive.

Primeira carta.

Sempre chego cedo ao meu escritório, não por que goste do meu trabalho, mas simplesmente por odiar minha esposa e suas reclamações disfarçadas. Não conseguimos dormir juntos faz algum tempo e entre me entediar de graça em casa acho melhor escutar as baboseiras de tanta gente desesperada a procura de confirmações para suas expectativas e desconfianças. E hoje não começou diferente. Recebi logo quando cheguei três chamadas, entre elas uma a cobrar – impressionante! – de maridos desesperados e consortes desconfiadas, você sabe. E em cada vez que eu desligava o telefone mais um ponto pro meu desânimo. Por volta das 3 horas da tarde decidi fechar o escritório mais cedo e ir para um pub próximo ver se um Chopp e um cigarro no dedo me dariam um motivo melhor pra manter minha vida miserável. Cheguei em pouco tempo e como de costume procurei uma mesa mais reservada pra me sentar. Coloquei meu sobretudo de modo a escorrer a água e retirei meus óculos escuros para descansar a vista. Pedi o Chopp, o cigarro, respirei um pouco e me calei escutando o burburinho. Em pouco tempo fui abordado por um cara molhado da chuva, meio barrigudo, com um bigode seboso e um olhar frio como se não existisse nem um pedaço de alma dentro. Ele não esperou que eu o convidasse e foi logo se sentando. Fiquei imaginando daonde o conhecia, mas fica difícil reconhecer todos depois de 10 anos trabalhando com todo tipo de gente vindo atrás de seus serviços, mas eu sabia que se já o tivesse visto antes logo me lembraria. E sem muita  demora ele me contou em poucas palavras qual era o problema dele: estou morto! Olhei o barrigudo e acredito que consegui fazer uma cara de tacho pior do que a dele. “Repita por favor!” “Estou morto! Não tenho mais saída, mas mesmo assim quero seus serviços.” Eu admito que quase levei ao pé da letra, mas contive meu riso frouxo e apaguei o cigarro. “Bem, se você quer conversar sobre trabalho me encontre amanhã no meu escritório.” “Não posso, acho que não passo de hoje.” Admito que comecei a olhá-lo com mais piedade e um pouco de pena. Passei a mão no rosto e definitivamente comecei a me interessar pelo papo. Estava sendo mais agradável do que minhas crises de casado. “Continue, então!” “Bem. Morei quatros anos na zona sul da cidade num hotel barato próximo a uma igreja evangélica. Nesses quatro anos conheci muita gente da região e admito que descobri fácil seus podres. Certo dia peguei o pastor fudendo com um frango e depois disso me senti numa posição boa pra me aproveitar. Minha vida nunca fora boa mesmo, um pouco de grana fácil poderia me fazer debandar pra outro canto melhor em pouco tempo. Comecei a extorquir grana dele e em um mês percebi que aquele negócio de igreja dava uma grana maior do que se imagina. Acabei mudando os planos, já não queria ir embora… como poderia depois de conseguir descobrir uma mina de ouro. Foi quando ocorreu o seguinte. O pastor chegou na minha casa por volta das onze da noite com uma maleta preta. Pediu pra entrar eu aceitei, apesar de que desde que tudo começou ele nunca tinha me encontrado fora da igreja. Não desconfiei de nada. Entramos, ele se sentou meio nervoso na sala e eu fui até a geladeira pegar uma cerveja. Quando me viro vejo ele de pé apontando um revolver pra mim. Achei aquilo meio estúpido e admito que reagi sem acreditar nele. Foi quando ele me mandou pro inferno e deu um tiro na cabeça.” “Isso não é um problema. O cara fez tudo pra você e ainda limpou sua bunda! E eu ainda não sei seu nome.” “Desculpe-me Sebastião mas estou nervoso! Meu nome é Cícero da Penha e isso ainda não é o motivo pra eu ter vindo lhe procurar. Como deve ter imaginado, apesar do meu nervosismo e de não ter muita idéia do que fazer chamei a polícia. Fui levado para responder algumas perguntas e voltei pra casa exausto precisando tirar o sangue do meu sofá velho. Quando foi a noite ainda emburrado e me sentido culpado por isso escutei a campainha tocando. Me senti até aliviado por estar recebendo uma visita depois de vivenciar o que vivenciei à tarde. Levantei e fui até a porta e quando abri me deparei com o pastor na minha frente ainda ensanguentado apontando a arma pra mim.” Comecei a duvidar que o barrigudo tinha alguma sanidade, mas como estava curiosa a viagem dele deixei ele terminar. “Eu não tive outra reação a não ser me abaixar e tentar me livrar do tiro, mas claro que não houve tiro algum. Abri os olhos meio sem querer e não vi ninguém a não ser um pacote pequeno no chão. Peguei ainda nervoso e tranquei a porta sentindo meu coração pulsando como nunca. Fui pra cozinha e tomei um copo com água e açúcar. Quando terminei olhei melhor o pacote, foi esse aqui” Ele retira do bolso um pequeno pacote preto. Eu já tinha visto aquilo em um museu muito macabro que visitei fora do país, um museu de voodoo. Não consigo lembrar o nome desse artefato, mas acredito que você saiba o que é. Tinha cinzas dentro e algumas sementes e parecia mesclado com sangue ou algo do tipo. Tinha também um pequeno globo ocular, parecia de criança. Depois de um grande calafrio pela espinha comecei a entender por que o gorducho estava com aquela cara. Devolvi o pacote e esperei ele terminar. “Não sei o nome desse treco, mas sei que tem a ver com magia negra. Já vi isso em algum filme eu acho. Comecei então a pensar quem teria enviado isso. Foi quando me veio a mente o frango, namorado do pastor. Isso fez mais do que sentido pra mim e fui dormir anestesiado de calmante. Dias depois andando na rua descubro que o infeliz apareceu morto perto dali, no meio do mato. Mas o estranho fora a forma como foi morto, você deve ter ouvido falar no assassinato que parecia um ritual?!” “Sim, vi sim, na tv!” “Pois foi justamente esse. Fui pra casa e quando chego advinha quem eu vejo dentro da minha casa?” “O pastor Spawn!” “O que?” “Nada… continue.” “Eu vejo justamente o frango do pastor…” “Calma… o frango namorado dele, ou o pastor que no caso também é frango?” “Não o pastor frango não, o frango namorado dele.” “Certo, continue” “Ele estava com o pescoço cheio de sangue e me balbuciou exatamente isso” Ele pega um pedaço de papel com a seguinte frase: você é o próximo. “Foi você que escreveu isso?” “Claro!” “Pra que?” “Sabe… antes nem em Deus eu acreditava e agora eu venho vendo gente morta que invade minha casa pra me ameaçar, não acha que um pouco de superstição vai piorar minha situação.” “Não, claro que não, você tá fudido o suficiente… desculpe-me, continue.” “No outro dia encontrei outro pacote desse ai, igual. Arrumei minhas coisas e como que por coincidência vejo seu anúncio no jornal, e como fala que você resolve qualquer caso vim lhe procurar.” “Moço, o senhor precisa mais de uma sessão descarrego do que de um detetive, não acha?!” “Eu tentei isso, mas comecei a perceber que me meti em algo um pouco maior do que parecia. E hoje além de perceber que não vou durar muito tempo, percebi que não fiz nada de útil na minha vida.” “Ai você quer que eu torne seus últimos momentos menos inúteis?!” “Olhe senhor Sebastião, não sei exatamente por que acreditei que o senhor me ajudaria com isso, se de fato não tenho muita saída, mas achei muito estranho não ter esquecido o seu anúncio desde que olhei pra ele. Acabei encontrando o seu escritório por acaso, foi quando lhe vi saindo e pegando seu carro. Ainda fiquei lá fora pensando se isso de fato iria ajudar em alguma coisa, mas como não cheguei a nenhuma conclusão achei melhor vir falar com você. E vou lhe ser sincero… tive um sonho onde esse pessoal estranho que está por trás disso ameaçavam a minha filha de 14 anos… Ela não mora aqui e faz uns 6 anos que não a vejo, mas essa idéia ficou na minha cabeça me incomodando muito. Eu não quero viver, já basta toda a inutilidade de minha vida pra que eu deseje de fato permanecer vivo, mas não quero que maltratem a minha filha. Não se preocupe que dinheiro eu acumulei um bocado esses últimos tempos… a única coisa que lhe peço é isso…” Estranhamente ele bateu as botas na minha frente. Fiquei olhando ele por um tempo e até pensei que ele estava dopado e o efeito tinha vindo a tona, mas percebi que ele não estava tão próximo assim quando o sangue começou a escorrer da sua orelha. Bem, não me pergunte como isso ocorreu, o que consegui recuperar na hora foi o pacote voodoo e um envelope amarelo que acredito que já era pra mim mesmo, com a grana razoável e uns documentos e endereços. Não sei o que falar a mais sobre isso e espero alguma idéia o mais rápido possível. Estarei indo pela manhã atrás da antiga casa dele e o pacote voodo enviei junto com a carta, espero que tenha realmente chegado… Admito que poderia esquecer essa história e ainda ficar com uma gratificação pela conversa, mas o dinheiro já era amaldiçoado o suficiente pra eu agir assim.

Abraço fraterno. Até breve.