30 de março de 2010
A menina de um olho só
29 de março de 2010
15/04/1999 – 10:20 – Dia nublado.
18 de julho de 2009
07/04/1999 07:45 - dia chuvoso.
Carta de Sebastião Monte ao amigo Jacinto Siqueira. Policial dispensado – detetive.
Primeira carta.
Sempre chego cedo ao meu escritório, não por que goste do meu trabalho, mas simplesmente por odiar minha esposa e suas reclamações disfarçadas. Não conseguimos dormir juntos faz algum tempo e entre me entediar de graça em casa acho melhor escutar as baboseiras de tanta gente desesperada a procura de confirmações para suas expectativas e desconfianças. E hoje não começou diferente. Recebi logo quando cheguei três chamadas, entre elas uma a cobrar – impressionante! – de maridos desesperados e consortes desconfiadas, você sabe. E em cada vez que eu desligava o telefone mais um ponto pro meu desânimo. Por volta das 3 horas da tarde decidi fechar o escritório mais cedo e ir para um pub próximo ver se um Chopp e um cigarro no dedo me dariam um motivo melhor pra manter minha vida miserável. Cheguei em pouco tempo e como de costume procurei uma mesa mais reservada pra me sentar. Coloquei meu sobretudo de modo a escorrer a água e retirei meus óculos escuros para descansar a vista. Pedi o Chopp, o cigarro, respirei um pouco e me calei escutando o burburinho. Em pouco tempo fui abordado por um cara molhado da chuva, meio barrigudo, com um bigode seboso e um olhar frio como se não existisse nem um pedaço de alma dentro. Ele não esperou que eu o convidasse e foi logo se sentando. Fiquei imaginando daonde o conhecia, mas fica difícil reconhecer todos depois de 10 anos trabalhando com todo tipo de gente vindo atrás de seus serviços, mas eu sabia que se já o tivesse visto antes logo me lembraria. E sem muita demora ele me contou em poucas palavras qual era o problema dele: estou morto! Olhei o barrigudo e acredito que consegui fazer uma cara de tacho pior do que a dele. “Repita por favor!” “Estou morto! Não tenho mais saída, mas mesmo assim quero seus serviços.” Eu admito que quase levei ao pé da letra, mas contive meu riso frouxo e apaguei o cigarro. “Bem, se você quer conversar sobre trabalho me encontre amanhã no meu escritório.” “Não posso, acho que não passo de hoje.” Admito que comecei a olhá-lo com mais piedade e um pouco de pena. Passei a mão no rosto e definitivamente comecei a me interessar pelo papo. Estava sendo mais agradável do que minhas crises de casado. “Continue, então!” “Bem. Morei quatros anos na zona sul da cidade num hotel barato próximo a uma igreja evangélica. Nesses quatro anos conheci muita gente da região e admito que descobri fácil seus podres. Certo dia peguei o pastor fudendo com um frango e depois disso me senti numa posição boa pra me aproveitar. Minha vida nunca fora boa mesmo, um pouco de grana fácil poderia me fazer debandar pra outro canto melhor em pouco tempo. Comecei a extorquir grana dele e em um mês percebi que aquele negócio de igreja dava uma grana maior do que se imagina. Acabei mudando os planos, já não queria ir embora… como poderia depois de conseguir descobrir uma mina de ouro. Foi quando ocorreu o seguinte. O pastor chegou na minha casa por volta das onze da noite com uma maleta preta. Pediu pra entrar eu aceitei, apesar de que desde que tudo começou ele nunca tinha me encontrado fora da igreja. Não desconfiei de nada. Entramos, ele se sentou meio nervoso na sala e eu fui até a geladeira pegar uma cerveja. Quando me viro vejo ele de pé apontando um revolver pra mim. Achei aquilo meio estúpido e admito que reagi sem acreditar nele. Foi quando ele me mandou pro inferno e deu um tiro na cabeça.” “Isso não é um problema. O cara fez tudo pra você e ainda limpou sua bunda! E eu ainda não sei seu nome.” “Desculpe-me Sebastião mas estou nervoso! Meu nome é Cícero da Penha e isso ainda não é o motivo pra eu ter vindo lhe procurar. Como deve ter imaginado, apesar do meu nervosismo e de não ter muita idéia do que fazer chamei a polícia. Fui levado para responder algumas perguntas e voltei pra casa exausto precisando tirar o sangue do meu sofá velho. Quando foi a noite ainda emburrado e me sentido culpado por isso escutei a campainha tocando. Me senti até aliviado por estar recebendo uma visita depois de vivenciar o que vivenciei à tarde. Levantei e fui até a porta e quando abri me deparei com o pastor na minha frente ainda ensanguentado apontando a arma pra mim.” Comecei a duvidar que o barrigudo tinha alguma sanidade, mas como estava curiosa a viagem dele deixei ele terminar. “Eu não tive outra reação a não ser me abaixar e tentar me livrar do tiro, mas claro que não houve tiro algum. Abri os olhos meio sem querer e não vi ninguém a não ser um pacote pequeno no chão. Peguei ainda nervoso e tranquei a porta sentindo meu coração pulsando como nunca. Fui pra cozinha e tomei um copo com água e açúcar. Quando terminei olhei melhor o pacote, foi esse aqui” Ele retira do bolso um pequeno pacote preto. Eu já tinha visto aquilo em um museu muito macabro que visitei fora do país, um museu de voodoo. Não consigo lembrar o nome desse artefato, mas acredito que você saiba o que é. Tinha cinzas dentro e algumas sementes e parecia mesclado com sangue ou algo do tipo. Tinha também um pequeno globo ocular, parecia de criança. Depois de um grande calafrio pela espinha comecei a entender por que o gorducho estava com aquela cara. Devolvi o pacote e esperei ele terminar. “Não sei o nome desse treco, mas sei que tem a ver com magia negra. Já vi isso em algum filme eu acho. Comecei então a pensar quem teria enviado isso. Foi quando me veio a mente o frango, namorado do pastor. Isso fez mais do que sentido pra mim e fui dormir anestesiado de calmante. Dias depois andando na rua descubro que o infeliz apareceu morto perto dali, no meio do mato. Mas o estranho fora a forma como foi morto, você deve ter ouvido falar no assassinato que parecia um ritual?!” “Sim, vi sim, na tv!” “Pois foi justamente esse. Fui pra casa e quando chego advinha quem eu vejo dentro da minha casa?” “O pastor Spawn!” “O que?” “Nada… continue.” “Eu vejo justamente o frango do pastor…” “Calma… o frango namorado dele, ou o pastor que no caso também é frango?” “Não o pastor frango não, o frango namorado dele.” “Certo, continue” “Ele estava com o pescoço cheio de sangue e me balbuciou exatamente isso” Ele pega um pedaço de papel com a seguinte frase: você é o próximo. “Foi você que escreveu isso?” “Claro!” “Pra que?” “Sabe… antes nem em Deus eu acreditava e agora eu venho vendo gente morta que invade minha casa pra me ameaçar, não acha que um pouco de superstição vai piorar minha situação.” “Não, claro que não, você tá fudido o suficiente… desculpe-me, continue.” “No outro dia encontrei outro pacote desse ai, igual. Arrumei minhas coisas e como que por coincidência vejo seu anúncio no jornal, e como fala que você resolve qualquer caso vim lhe procurar.” “Moço, o senhor precisa mais de uma sessão descarrego do que de um detetive, não acha?!” “Eu tentei isso, mas comecei a perceber que me meti em algo um pouco maior do que parecia. E hoje além de perceber que não vou durar muito tempo, percebi que não fiz nada de útil na minha vida.” “Ai você quer que eu torne seus últimos momentos menos inúteis?!” “Olhe senhor Sebastião, não sei exatamente por que acreditei que o senhor me ajudaria com isso, se de fato não tenho muita saída, mas achei muito estranho não ter esquecido o seu anúncio desde que olhei pra ele. Acabei encontrando o seu escritório por acaso, foi quando lhe vi saindo e pegando seu carro. Ainda fiquei lá fora pensando se isso de fato iria ajudar em alguma coisa, mas como não cheguei a nenhuma conclusão achei melhor vir falar com você. E vou lhe ser sincero… tive um sonho onde esse pessoal estranho que está por trás disso ameaçavam a minha filha de 14 anos… Ela não mora aqui e faz uns 6 anos que não a vejo, mas essa idéia ficou na minha cabeça me incomodando muito. Eu não quero viver, já basta toda a inutilidade de minha vida pra que eu deseje de fato permanecer vivo, mas não quero que maltratem a minha filha. Não se preocupe que dinheiro eu acumulei um bocado esses últimos tempos… a única coisa que lhe peço é isso…” Estranhamente ele bateu as botas na minha frente. Fiquei olhando ele por um tempo e até pensei que ele estava dopado e o efeito tinha vindo a tona, mas percebi que ele não estava tão próximo assim quando o sangue começou a escorrer da sua orelha. Bem, não me pergunte como isso ocorreu, o que consegui recuperar na hora foi o pacote voodoo e um envelope amarelo que acredito que já era pra mim mesmo, com a grana razoável e uns documentos e endereços. Não sei o que falar a mais sobre isso e espero alguma idéia o mais rápido possível. Estarei indo pela manhã atrás da antiga casa dele e o pacote voodo enviei junto com a carta, espero que tenha realmente chegado… Admito que poderia esquecer essa história e ainda ficar com uma gratificação pela conversa, mas o dinheiro já era amaldiçoado o suficiente pra eu agir assim.
Abraço fraterno. Até breve.