29 de março de 2010

15/04/1999 – 10:20 – Dia nublado.

Carta de Jacinto Siqueira ao amigo Sebastião Monte. Professor universitário - antropólogo.
Primeira carta.
Tenho que confessar que receber uma carta sua é sempre motivo para o aparecimento súbito de sentimentos, de certa forma, antagônicos: alegria e chateação. Alegria porque é sempre bom ter um contato com um velho amigo que sucessivamente me surpreende com suas histórias malucas de filmes policiais b – aquele pseudo noir tupiniquim que mais parece ter saído de um programa de humor ou de uma novela das oito. Chateação porque as cartas sempre me parecem erguer seus alicerces mais sobre um pedido de quebra-galho do que do que na tentativa de matar as saudades de um camarada antigo. Tudo bem, amigo é pra essas coisas. Ainda mais quando lembro que nossa relação foi sempre uma mistura de amizade e aproveitamento, eu te dando ajuda e você me dando esse seu “sarcasmo negro” que me diverte tanto. Simbiose, pra ficar numa metáfora clichê da biologia.
Antes de fazer meu favor, peço só que tenha paciência para compartilhar comigo da minha crise de nostalgia que tenho sofrido nesses últimos dias e lembrar daquele tempo em que estávamos ambos na faculdade de direito. Você porque queria botar os caras maus na cadeia e eu porque tinha que fazer isso pra agradar o liberalismo do meu pai. Aquele era um bom tempo, menos por causa do curso, que era de fato um tremendo pé-no-saco, do que pela quase total falta de responsabilidades reais que tínhamos. Ficar putos e alegres, essa era nossa tarefa naquela época, o que deixa tudo mais triste quando percebo que perdemos esse dever intrinsecamente antitético e ficamos só com a primeira parte da equação. Talvez tenha sido essa perda que tenha nos tirado do caminho semelhante que trilhávamos e levado você a virar inspetor logo de vez e eu a procurar outro curso. Mas não é nisso que venho pensando esses dias, nos motivos, mas somente nos acontecimentos, então vou deixando essa reflexão de lado antes que vire um chororô vergonhoso para nós dois. Deixemos isso pra lá e vamos ao seu favor.
O pacote. Dei uma pesquisada sobre religiões africanas, e, embora não seja minha principal área, acredito que consegui descobrir do que se tratava. Segundo um artigo escrito na década de 60 por um professor francês chamado Jean-Pierre Duboir, tal pacote se trata de um fetiche que visa trazer desgraça à vida da vítima do bruxo que o confeccionou. Com certeza você já ouviu falar dos famosos bonecos vudu; é algo semelhante, embora a origem seja diferente, bem como os princípios simbólicos envolvidos. Segundo Duboir, se trata de uma espécie de vudu do norte da Angola, praticada por um povo chamado “Zeua”. Tal fetiche, de nome “umuluco”, possui o poder de atrair para o mundo dos vivos o espírito de alguém que, pelo fato de ter morrido violentamente, carrega em si uma fúria interminável. Este espírito procura de todas as formas descarregar sua fúria sobre alguém, que acaba sendo a vítima do bruxo que fez o umuluco. O globo ocular é realmente de uma criança (você não imagina o quanto vê-lo me causou arrepios), e segundo a simbologia do fetiche, ele funciona como o “item material” que propicia o espírito ver seu “alvo”; para os Zeua o olho de uma criança possui certas propriedades mágicas, dentre as quais, fazer uma “ponte” visual entre o mundo dos vivos e dos mortos. O que parecia cinzas é um preparado de terra com várias ervas queimadas, e o que parecia sangue, era sangue de fato. Provavelmente de algum animal quadrúpede ou de alguma ave, não de ser humano. As sementes são de baobá, arvore sagrada para vários povos africanos, talvez você já tenha ouvido falar. No fetiche funcionam como uma espécie de alimento espiritual para o morto; elas são responsáveis por garantir-lhe energia o suficiente para manter-se no mundo dos vivos até encontrar sua vítima.
Estou mandando o artigo do Duboir para você mesmo ler. Talvez seja mais elucidativo do que somente o que eu resumi aqui nesta carta.
Devo reconhecer que toda essa história me parece bastante esquisita; mas se ainda assim você quer saber minha opinião sobre a veracidade dos fatos narrados pelo seu falecido contratante, acredito que você já deva imaginar que considero tudo a mais pura balela. Não sei com qual objetivo o sujeito o procurou, muito menos porque se deu ao trabalho de fazer um trabalho de pesquisa tão apurado para reproduzir o fetiche (sem contar com o “trabalho” possivelmente homicida, levando em consideração que o globo ocular seja verdadeiro) e entregá-lo a você, mas todos nós que temos um mínimo de conhecimento que seja sabemos que tudo isso é invenção de um povo que ainda se encontra num estágio de pensamento muito antigo. Se dentre muitos de nós, filhos do pensamento racional e cético, ainda há aqueles que acreditam na história da cobrinha falante, imagine só aqueles que se encontram bem afastados da nossa cultura, vivendo ainda debaixo do céu como viviam seus mais remotos ancestrais? Não dizendo que isso seja triste, pois é o modo original deles viverem, e não se pode querer tirar isso deles; mas triste são aqueles que copiam esse tipo de coisa e vendem como se fosse verdade dentro de uma realidade totalmente distinta. Ainda mais para enganar as pessoas, como – acredito eu - tentaram fazer com você, meu caro. Espero que você descubra o porquê (e conhecendo-o como conheço, sei que vai).
Mas bem, vou parando por aqui com minhas divagações. Entretanto, antes de me despedir, deixe-me falar de algo realmente interessante e que talvez o ajude com sua investigação.
Ontem, logo depois que eu terminava a minha pesquisa para responder sua carta, apareceu por aqui uma jovem mulher procurando pela ajuda de um especialista sobre um determinado assunto ligado a fetiches. Achei engraçada a coincidência, mas logo ela se revelou muito maior do que eu imaginava: a moça pedia informações sobre o mesmo pacote que você me enviou! Tentando disfarçar a surpresa, disse que essa não era exatamente minha área, mas ela insistiu que qualquer descoberta sobre o assunto seria “amplamente recompensada”; só então reparei que ela tinha toda uma pinta de ricaça, com bolsa, sapatos, jóias e roupas nitidamente caros. Disse a ela que faria o possível para descobrir algo, e ela me deixou seu cartão pedindo que eu entrasse em contato logo que tivesse alguma informação, por menor que fosse.
Não falei nada para ela porque não sabia se isso poderia prejudicar sua investigação (veja que deixei de ganhar um possível bom dinheiro por sua culpa!). De todo jeito, mando-o também o nome e o contato da moça. Talvez isso seja útil.
Bom, despeço-me finalmente. Espero ter ajudado em alguma coisa. E não se esqueça de me avisar sobre qualquer novidade sobre o caso.
Um grande abraço, meu amigo.
J. Siqueira.